
Livro póstumo de contos, A bela e a fera apresenta ao leitor duas Clarices: a primeira, uma jovem aflita, com imaginação de extrema vitalidade, que, aos 14 anos, começa a inventar histórias e a escrever contos insólitos que têm como marca a expressão de intensos impulsos emocionais. Clarice Lispector perdera pouco antes sua mãe, que já conhecera paralítica. A menina de 1940 carregava uma dor dupla: a perda da mãe, com quem mal pudera se relacionar, e o martírio de não tê-la salvo da enfermidade ao nascer, conforme a previsão dos médicos. Foi neste contexto que, a partir de 1940, surgiram os contos da primeira parte do livro: "História interrompida", "Gertrudes pede um conselho", "Obsessão", "O delírio", "A fuga" e "Mais dois bêbados". São temas leves de menina, como a adolescente ansiosa para "resolver" seu amor por aquele rapaz estranho, bonito e triste de "História interrompida". Ou a luta de Gertrudes por ajuda para a melancolia em cartas que escreve a uma médica consultora de um jornal em "Gertrudes pede um conselho". Mas o sofrimento é de gente grande, dores maduras, que a autora cultivava há muito tempo, apesar dos poucos 14 anos. Mas nem assim Clarice perde o humor. Os ensaios de Clara para pedir ou apenas comunicar seu casamento com W. são hilariantes, e sem dúvida compartilhados por todas as adolescentes do mundo. Mas o desfecho trágico – W. se mata, antes da declaração da amada – é só de Clarice Lispector. A amiga, colaboradora e companheira dos últimos anos de vida Olga Borelli explica que estes contos da adolescência não foram publicados antes porque, na verdade, Clarice não sabia o que era exatamente um conto, mas tinha intuição do que era um anticonto: "Talvez ela entendesse mais de anticonto, porque se considerava antiescritora", diz Olga na apresentação do livro. A esta característica, Clarice atribuía a não publicação de seus trabalhos de pré-adolescente, enviados para a seção de contos infantis de O Diário de Pernambuco. O jornal só publicava histórias que, segundo Clarice, começavam com "Era uma vez, e isso, e mais isso, e depois aquilo..." Olga Borelli lembra que Clarice costumava dizer que só escrevia quando "a coisa vem". E foi assim que vieram os dois contos escritos em seus últimos meses de vida, em 1977 : "Um dia a menos" e "A bela e a fera". Este último, segundo Olga, nascido de uma visão dilacerada do encontro de uma dondoca com um mendigo ferido em Copacabana. A desgraça do mendigo da ferida aberta chocou a socialite, não apenas por lhe ter provocado um forte clamor por justiça social, mas por perceber que a ferida do mendigo era real, ao passo que ela sequer existia. Era uma alma penada pairando pelos salões e encobrindo com jóias um infinito vazio. Sua ferida era o nada. A bela e a fera, como os demais títulos de Clarice Lispector relançados pela Rocco, recebeu novo tratamento gráfico e passou por rigorosa revisão de texto, feita pela especialista em crítica textual Marlene Gomes Mendes, baseada em sua primeira edição.
Author

Clarice Lispector was a Brazilian writer. Acclaimed internationally for her innovative novels and short stories, she was also a journalist. Born to a Jewish family in Podolia in Western Ukraine, she was brought to Brazil as an infant, amidst the disasters engulfing her native land following the First World War. She grew up in northeastern Brazil, where her mother died when she was nine. The family moved to Rio de Janeiro when she was in her teens. While in law school in Rio she began publishing her first journalistic work and short stories, catapulting to fame at age 23 with the publication of her first novel, 'Near to the Wild Heart' (Perto do Coração Selvagem), written as an interior monologue in a style and language that was considered revolutionary in Brazil. She left Brazil in 1944, following her marriage to a Brazilian diplomat, and spent the next decade and a half in Europe and the United States. Upon return to Rio de Janeiro in 1959, she began producing her most famous works, including the stories of Family Ties (Laços de Família), the great mystic novel The Passion According to G.H. (A Paixão Segundo G.H.), and the novel many consider to be her masterpiece, Água Viva. Injured in an accident in 1966, she spent the last decade of her life in frequent pain, steadily writing and publishing novels and stories until her premature death in 1977. She has been the subject of numerous books and references to her, and her works are common in Brazilian literature and music. Several of her works have been turned into films, one being 'Hour of the Star' and she was the subject of a recent biography, Why This World, by Benjamin Moser.