
Existir na grande cidade, sozinho, sem beijos—era o mesmo para o artista do que se vivesse com uma companheira garrida, suave, de carne audaciosa. Ao passo que hoje, em Lisboa, ainda que tivesse a melhor das amantes, se sentiria igualmente solitário, longe de todos os beijos, de toda a gentileza. A capital latina evocava-lhe um grande salão iluminado a jorros—perfumes esguios, luas zebradas, cores intensas, rodopiantes... Lisboa era uma casa estreita, amarela—parentes velhos que não deixam sair as raparigas—luz de petróleo, tons secos, cheiro de alfazema... E fora este amor enorme de Paris tão lucidamente sentido que lhe salvara por certo a vida, há mais dum ano. A sua existência atravessava então, sem motivos, uma crise extrema, desolada em angústia. Via-se sem forças, morto para todos os o cérebro líquido, a alma quebrada—a ponto que decidira fortemente meter uma bala no coração... Mas fora em Paris, e ah! lembrava-se tão bem da onda circular de orgulho triunfal que o evadira uma tarde, arremessando-lhe para longe essa ideia negra... Tinha sido na Place Blanche. Acompanhava-o um amigo, jovem pintor cubista e de gorro de peles. Parados em face do Moulin-Rouge, os dois conversavam... O pintor ia tagarelando qualquer episódio banal, — ele, nem o ouvindo, extático no ambiente que os cercava... Era uma alegria de feira ao seu redor... No moinho do célebre music-hall, mansamente, principiavam a girar as velas de luz vermelha... camelots gritavam os jornais da noite... um carroussel volteava próximo, ao som rouco dum órgão mecânico... rapariguinhas pintadas seguiam no crepúsculo, em perfil perdido, galantes... Ali se focava bem sensível, em festa, o Paris tradicional—o Paris dos estrangeiros que todos, nas nossas terras, desde crianças sonhamos... E perante o cenário inútil, barato na aparência, o artista sentira—ah! de súbito, em verdade, sentira alucinadamente, Paris dentro de traspassando-o, lavando-lhe a alma, acendendo-o de mil luzes—golfando seios, entornando Champanhe, fustigando oiro...
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Mário de Sá-Carneiro (Lisboa, 19 de Maio de 1890 — Paris, 26 de Abril de 1916) foi um poeta, contista e ficcionista português, um dos grandes expoentes do modernismo em Portugal e um dos mais reputados membros da Geração d’Orpheu. Na fase inicial da sua obra, Mário de Sá-Carneiro revela influências de várias correntes literárias, como o decadentismo, o simbolismo, ou o saudosismo, então em franco declínio; posteriormente, por influência de Pessoa, viria a aderir a correntes de vanguarda, como o interseccionismo, o paulismo ou o futurismo. Nessas pôde exprimir com vontade a sua personalidade, sendo notórios a confusão dos sentidos, o delírio, quase a raiar a alucinação; ao mesmo tempo, revela um certo narcisismo e egolatria, ao procurar exprimir o seu inconsciente e a dispersão que sentia do seu «eu» no mundo – revelando a mais profunda incapacidade de se assumir como adulto consistente. O narcisismo, motivado certamente pelas carências emocionais (era órfão de mãe desde a mais terna puerícia), levou-o ao sentimento da solidão, do abandono e da frustração, traduzível numa poesia onde surge o retrato de um inútil e inapto. A crise de personalidade levá-lo-ia, mais tarde, a abraçar uma poesia onde se nota o frenesi de experiências sensórias, pervertendo e subvertendo a ordem lógica das coisas, demonstrando a sua incapacidade de viver aquilo que sonhava – sonhando por isso cada vez mais com a aniquilação do eu, o que acabaria por o conduzir, em última análise, ao seu suicídio. Embora não se afaste da metrificação tradicional (redondilhas, decassílabos, alexandrinos), torna-se singular a sua escrita pelos seus ataques à gramática, e pelos jogos de palavras. Se numa primeira fase se nota ainda esse estilo clássico, numa segunda, claramente niilista, a sua poesia fica impregnada de uma humanidade autêntica, triste e trágica. Por fim, as cartas que trocou com Pessoa, entre 1912 e o seu suicídio, são como que um autêntico diário onde se nota paralelamente o crescimento das suas frustrações interiores.